Por Salete Maria da Silva[1]
Neste ano de 2019 a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, conhecida como CEDAW[2], completa 40 anos. Isto mesmo! Quatro décadas de existência daquela que entrou para a história mundial como a “Carta Magna de todas as mulheres[3]”, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979.
Celebrar esta data é reconhecer e render homenagens à luta histórica e internacional das mulheres pelo reconhecimento, defesa e garantia dos direitos humanos da parcela feminina da humanidade, além de lembrar que os Estados precisam cumprir com seus compromissos assumidos internacionalmente.
De igual modo, também se trata de um momento ideal para reafirmar, especialmente para as novas e futuras gerações, que a luta em defesa dos direitos das mulheres e contra a desigualdade de gênero não pode parar, pois a discriminação e, consequentemente, a violência com base no gênero ainda atinge as milhares de mulheres em todo o mundo, nas mais diversas sociedades e culturas humanas, exigindo compromissos dos Estados nacionais para com a eliminação desta injusta realidade.
Para quem não sabe, o processo de criação da CEDAW foi lento e gradual, tendo se iniciado em 1946, com os trabalhos da Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher, alcançado êxito somente trinta e três anos depois, com aprovação do seu texto pela Assembleia Geral da ONU. Entre o referido ano e meados da década de 1970, a mencionada Comissão se debruçou e refletiu, intensamente, sobre as possibilidades de se construir normas de caráter internacional capazes de sensibilizar a sociedade e transformar as leis nacionais de cunho discriminatório em termos de gênero, além de pensar em mecanismos de superação das discriminações que tanto geram desigualdade e violência.
Assim, e num contexto que se inicia no pós-segunda guerra mundial e vai ganhar eco na Primeira Conferência Mundial da Mulher, em 1975 no México, mulheres aguerridas de diversas partes do mundo trabalharam incansavelmente para nomear a outra metade da humanidade como sujeitos de direitos e, portanto, como titulares plenas do exercício da cidadania.
Questionando a visão hegemônica acerca dos direitos humanos, num período onde os discursos sobre esta temática eram exclusivamente androcêntricos[4], as mulheres legaram para o mundo inteiro um texto que reúne disposições de todas as demais normas
internacionais relativas à discriminação femininas, tais como: a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, de 1953; a Convenção sobre a Nacionalidade da Mulher Casada, de 1957 e a Convenção sobre Consentimento e Idade Mínima para o Matrimônio, de 1962.[5] Estes documentos, sem sobra de dúvida, serviram de pontapé inicial para que a ONU pudesse dar um salto ainda mais largo com o advento da Convenção em comento.
A CEDAW, além de contemplar todos os direitos humanos das mulheres, de modo explícito ou não, já que proíbe qualquer forma de discriminação em razão do sexo, tem contribuído, paulatinamente, para o debate acerca da posição de inferioridade social conferida às mulheres em diversas partes do mundo, influenciando vários países na construção de normas constitucionais e infraconstitucionais que garantem a igualdade de gênero em todas as esferas da sociedade .
Vale pontuar que, ao longo de décadas, a Comissão que deu origem à CEDAW produziu inúmeras investigações sobre a realidade jurídica e política das mulheres nos mais distintos países, e cujos conteúdos serviram de base para a elaboração de inúmeros documentos até chegar no texto definitivo do tratado que ora completa quarenta anos.
A Convenção, portanto, é um tratado internacional de importância ímpar para as mulheres de todo o mundo e seu corpo normativo é constituído por 30 artigos que se ocupam de explicar quais são os direitos das mulheres e o que os governos devem fazer para eliminar a discriminação contra as mesmas[6].
A primeira parte do texto da CEDAW, mais precisamente os seus artigos 1 a 16, expõe as diversas ações que os governantes devem adotar para eliminar a discriminação contra as mulheres, destacando áreas específicas em que é preciso atuar para que essa discriminação específica seja eliminada, tais como a seara da legislação, a esfera do casamento (e da família, portanto), o âmbito da educação, da saúde e do emprego, especialmente.
Em seus artigos 17 a 22, a CEDAW estabelece a criação de um comitê internacional de especialistas, identificado como Comitê CEDAW ou Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Este Comitê tem por competência, dentre outros assuntos, verificar se os governos que ratificaram a Convenção estão envidando esforços para acabar com a discriminação contra mulheres em todas as fases de suas vidas.
Já os derradeiros artigos, isto é, do 23 ao 30, indicam formas de trabalho e esforços conjugados que a ONU e os governos podem adotar para que sejam garantidas a total proteção dos direitos de todas as mulheres em todo o mundo.
Esta Convenção, portanto, constitui o principal instrumento de exigibilidade dos direitos das mulheres no mundo inteiro[7]. E para que possa ser operacionalizada e efetivada na realidade fática, apresenta, periodicamente, Recomendações interpretativas dos seus artigos, cujos princípios norteadores são: o princípio da igualdade[8], o princípio da não-discriminação e o princípio da responsabilidade estatal, sobretudo para com a criação de mecanismos e ações afirmativas destinadas à mudança cultural que garanta a mais efetiva e plena participação social e políticas das mulheres.
Além disto, há, ainda, a existência de um Protocolo Facultativo, que é um documento através do qual as mulheres – sozinhas ou de maneira conjunta – podem apresentar queixas, reclamações e informações junto ao Comitê CEDAW, relativas à violação de seus direitos ou de outrem, a fim de que este investigue e aponte as medidas a serem tomadas.
Merece registro o fato de que o Comitê da CEDAW também pode fazer o acompanhamento do seu cumprimento junto aos estados que a ratificaram[9], fortalecendo, assim, a efetividade da Convenção.
Todavia, apesar da importância da CEDAW para as mulheres do mundo todo e para o avanço das políticas estatais em torno da igualdade de gênero em particular, ainda há uma escassez de conhecimento acerca deste instrumento, quando não uma completa ignorância sobre sua existência, inclusive entre profissionais do campo jurídico, para quem o seu estudo deveria ser obrigatório, vez que se trata de instrumento normativo de caráter internacional e, como tal, está para o Estado brasileiro como norma constitucional recepcionada.
Isto dito, vale sugerir, especialmente neste ano de 2019, que todas as Faculdades de Direito do Brasil construam espaços favoráveis ao conhecimento, debate, difusão e celebração desta Convenção a fim de que a mesma possa vir a ser um documento de estudo frequente entre as e os trabalhadores do mundo jurídico.
Viva a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher ! Viva a luta das mulheres pelos seus direitos humanos fundamentais! Viva os esforços estatais em prol da eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres! Viva os movimentos de mulheres e feministas que pressionam o cumprimento desta e de outras legislações!
[1] Advogada feminista, mestra em Direito, doutorado em Estudos de Gênero, docente do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da UFBA, coordenadora do grupo de pesquisa JUSFEMINA.
[2] Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, CEDAW, por sua sigla em inglês.
[3] Expressão utilizada pela jurista feminista Alda Facio, com quem a autora deste texto dividiu mesa de diálogo na Universidade Autónoma de la Ciudad de México-UACM em abril de 2016, e na Universidade Federal da Bahia-UFBA, em setembro do mesmo ano.
[4] Isto é, centrados na figura masculina
[5] Convenção sobre a Igualdade de Remuneração do Trabalho Masculino e Feminino, de 1951, da OIT.
[6]Para consultar o texto na íntegra, consultar o seguinte link: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139389
[7] A CEDAW foi ratificada por 188, dos 193 países existentes, sendo que alguns deles impõem certas reservas e objeções com relação a determinados temas ou modos de interpretação.
[8] Este princípio se refere tanto a igualdade formal, ou seja, no trato legal, como à “igualdade substantiva” que corresponde a adoção de ações ou medidas para assegurar igualdade de acesso, igualdade de oportunidades e igualdade de resultados para as mulheres, em qualquer fase da vida.
[9] Ratificar significa que os Estados, através de seus governantes, selam um acordo junto à ONU visando garantir os direitos previstos na Convenção, inclusive incorporando-os à sua própria legislação. Assim sendo, todo país que assume compromissos com a CEDAW têm o dever de eliminar a discriminação contra mulheres em seus territórios.