Há trinta anos, a feminista Maria Amélia de Almeida Teles subiu à tribuna do Parlamento Nacional, em pleno processo de elaboração da atual Constituição Federal, para colocar em pauta a temática do aborto. Isto se deu no seio da Assembleia Nacional Constituinte, da qual as mulheres, através do grupo de pressão denominado lobby do batom[1], participaram ativa e corajosamente.
Naquela ocasião, Amelinha, como é conhecida esta veterana feminista brasileira de 74 anos, apresentou a Emenda Popular Saúde da Mulher, subscrita por representantes de movimentos e organizações de mulheres espalhadas pelo Brasil inteiro.
Em seu pronunciamento, que deve ser lembrado como um momento histórico na luta pela descriminalização do aborto no país, tratou deste assunto não apenas como um direito da parcela feminina da sociedade, mas como uma questão de saúde pública, destacando o crescente número de mortes de mulheres decorrentes da realização clandestina desta prática. Sua intervenção, que está detalha em meu livro intitulado “A Carta que Elas Escreveram: as mulheres na Constituinte de 1987/88”[2], animou importantes debates acerca da temática em apreço, haja vista que causou polêmica não somente entre as mulheres participantes do lobby referido, mas entre as deputadas e deputados constituintes que, em sua maioria, resistiam em tratar daquele tema naquele momento e, sobretudo, em sede constitucional.
Em face do exposto, e levando em consideração o contexto histórico, as mulheres organizadas de então optaram por não tensionar a Assembleia Constituinte em torno da referida discussão, pois havia, dentre elas, o temor da perda de aliadas/os entre parlamentares ou mesmo a retirada de direitos já consensuados em diversas comissões temáticas, em torno de outros temas igualmente relevantes para a ampliação da cidadania feminina.
Como destacado em meu livro acima mencionado, as discussões sobre o aborto no Brasil, ou melhor dizendo, o debate em torno de sua descriminalização, foi e continua sendo uma das pautas feministas com mais dificuldade de abordagem no seio da nossa sociedade. E isto se deu e ainda se dá não apenas em face de um engajado posicionamento contrário, articulado pelas forças políticas mais conservadoras e reacionárias do país – incluindo-se aí representantes das mais diversas igrejas – mas também por conta da resistência social fortemente estimulada e influenciada pela desinformação acerca do tema, o que dificulta, sobremaneira, o convite à reflexão que poderia ser convocado pelas mais distintas organizações e instituições sociais, junto às quais o poder público deveria atuar como mediador e/ou catalizador das diversas percepções e opiniões, que devem ser balizadas consoantes as ideias de Estado laico e aprofundamento da democracia.
Ocorre, todavia, que se trata de um tema que deve ser discutido à luz das perspectivas feministas, pois estas são construídas com base na realidade e nas experiências do grupo social diretamente envolvido com tema, qual seja, as mulheres de um modo geral e as mulheres das camadas populares em particular, cujos direitos à liberdade, à autonomia dos corpos, à saúde integral e à própria vida tem sido secundarizados e/ou banalizados diante do discurso hegemônico e sua persistência de criminalização.
No momento presente, e em face de uma ação[3] que tramita no Supremo Tribunal Federal, o debate está reaberto e mais aceso do que nunca. Porém, não obstante sua importância e atualidade, além das excelentes contribuições teóricas apresentadas por pesquisadoras como Débora Diniz, o fato é que, trinta anos depois do ocorrido no processo constituinte, ainda nos deparamos com velhos e insustentáveis argumentos de que este tema não deve ser objeto de análise na cúpula do Judiciário, pois a Justiça tem coisa mais importante com o que se ocupar, ou que o assunto não deve ser abordado como direito ou questão de saúde pública, mas como pecado imperdoável ou como questão moral, levantada, sobretudo, por homens que acorrem a argumentos religiosos e pseudocientíficos para manter seus privilégios de gênero e sua posição social. A diferença, no entanto, é que agora temos uma Corte Constitucional que já vem se manifestando positivamente pela descriminalização da referida conduta e um movimento feminista cada vez mais maduro e animado com as recentes manifestações e votações ocorridas na Argentina.
O aborto está em pauta novamente no Brasil e a hora é de avançarmos em suas discussões e decisões, afinal, nenhuma mulher (ou mesmo homem), feminista ou não, está defendendo o aborto em si, mas a sua descriminalização, isto é, está advogando por um tratamento não-penal de uma questão social tão complexa, tão presente entre nós e tão escamoteada ou minimizada historicamente. Esta é a discussão. Sigamos em defesa da laicização do Estado e dos direitos humanos das mulheres.
____________________________________________________
[1] Grupo de pressão composto por representantes dos movimentos feministas e de mulheres dos mais variados estados brasileiros, deputadas constituintes e representantes do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.
[2] Resultante de minha tese de doutorado, aprovada com distinção em 2012 no Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Universidade Federal da Bahia-UFBA, sob a orientação da doutora Ana Alice Alcântara Costa.
[3] Uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), de número 442, proposta pelo PSOL, argumenta, fundamentalmente, que os artigos do Código Penal que proíbem o aborto estão em desacordo com preceitos fundamentais da Constituição Federal, tais como: o direito das mulheres à própria vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, dentre outros.