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O legado constitucional em matéria de direitos humanos das mulheres

Neste ano em que a Constituição Federal completa três décadas de existência, diversos eventos, com as mais distintas abordagens, foram realizados em várias instituições sediados pelo Brasil afora. O mote, obviamente, era a comemoração dos 30 anos desta que se convencionou chamar de “Constituição Cidadã”, conforme dicção do próprio Ulisses Guimarães. Não resta dúvida de […]

Reprodução/ThinkStock

Neste ano em que a Constituição Federal completa três décadas de existência, diversos eventos, com as mais distintas abordagens, foram realizados em várias instituições sediados pelo Brasil afora. O mote, obviamente, era a comemoração dos 30 anos desta que se convencionou chamar de “Constituição Cidadã”, conforme dicção do próprio Ulisses Guimarães. Não resta dúvida de que o momento é mais do que propício para a realização de balanços e reflexões sobre o legado jurídico-político do referido texto constitucional, assim como sobre os desafios colocados para a sociedade e o Estado brasileiro nas próximas décadas.

Todavia, uma característica comum à maioria dos eventos mencionados é o seu caráter androcêntrico, isto é,  a adoção de uma perspectiva que coloca sempre os homens no centro das reflexões em torno de  qualquer tema ou problema social. Esta é uma característica presente em toda sociedade que se pauta por uma cultura patriarcal, dentre as quais se insere a brasileira. Assim, tanto os temas contidos nos cartazes dos eventos em apreço, como o perfil dos e das palestrantes corroboram o que, em teoria feminista, denominamos de cegueira ou “insensibilidade de gênero”, pois privilegia uma abordagem que foca naquilo que supostamente seja do interesse de toda a sociedade, invisibilizando demandas, temas, fatos, debates e conquistas alcançadas pela parcela feminina da sociedade, que no caso do Brasil constitui a maioria de sua população.

Por isso, na maioria dos debates em torno da feitura e do legado da Carta Magna, ainda que muitos destaquem seus avanços e limites em termos de implementação, especialmente nos eventos promovidos por entidades ou órgãos vinculados ao sistema de justiça, praticamente inexiste qualquer menção à intensa e profícua participação das mulheres na elaboração do texto constitucional e os efeitos positivos decorrentes desta atuação, especialmente no que concerne à ampliação dos direitos e da cidadania feminina no país.

A escassez de reflexão acerca da participação acima mencionada, bem como das conquistas alcançadas pelas mulheres através do chamado “lobby do batom”, decorre, em grande medida, não somente do total desconhecimento da referida participação; mas, como dissemos, de uma visão de mundo que confere maior visibilidade aos feitos dos grandes homens em detrimento da ação política feminina. Tudo isso reforça a manutenção dos privilégios masculinos na política, construção dos direitos e em sua aplicação, reiterando uma falsa impressão de que somente existe o tal “arquétipo viril protagonista da história”, para usar uma expressão da pensadora Amparo Moreno.

Visando suprir esta lacuna, em minha obra intitulada “A Carta que Elas Escreveram: as mulheres na Constituinte de 1987/88”, publicada em 2016 pela editora Instituto Memória, destaco, de maneira pormenorizada, a luta incessante das mulheres, dentro e fora do Parlamento Nacional, durante o período da Assembleia Nacional Constituinte, para se verem reconhecidas não somente como sujeitos de direito constitucional, mas como cidadãs capazes de apresentar demandas e convertê-las em direitos fundamentais, sejam eles individuais (civis e políticos), sociais, econômicos ou culturais.

Na mencionada obra, dou especial ênfase ao modo como foram vencendo barreiras, sobretudo de gênero, num espaço constituído majoritariamente por homens, onde elas eram apenas 25 mulheres num universo de mais de 500 parlamentares. Evidencio, com fotos, fatos e falas, como ousaram enfrentar a chamada “divisão sexual do trabalho” dentro do ambiente da Constituinte, assumindo posições, atribuições e colocando na pauta da  Assembleia diversas  questões relacionadas à igualdade de gênero na sociedade como um todo, mas com destaque para as relações de trabalho, as responsabilidades familiares, o contexto educacional e, em especial, cobrando responsabilidades do Estado para com o enfrentamento da violência ocorrida no seio familiar e doméstico. Aqui as mulheres borram a falsa dicotomia entre o público e o privado, ainda hoje reivindicada para evitar a intromissão do Estado em casos de violência contra mulheres, idosos e crianças, apesar das leis específicas sobre o tema.

Demonstro, ainda, como as demandas das mulheres, que outrora eram conhecidas através de palavras de ordem e/ou como reivindicações políticas verbalizadas em movimentos de rua, convertem-se em normas constitucionais que passaram a exigir uma nova abordagem jurídica e social, além de uma outra visão da teoria clássica do Direito e da própria Constituição, que não raro descrevia a Constituição como um pacto declaratório de direitos e estruturante do Estado, sem destaques para demandas de grupos específicos ou para questões tidas como de matéria infraconstitucional, como a temática da violência doméstica, das creches, da licença maternidade, da amamentação em caso de mães privadas de liberdade, dentre outras.

Enfim, eu demonstro que conquistas obtidas pelas mulheres e que estão contidas em diversos artigos do Texto Constitucional,  deve ser creditada, principalmente, à articulação das próprias mulheres na Assembleia Nacional Constituinte que, através das 26 deputadas eleitas, e, sobretudo, através da pressão exercida pelo movimento feminista e de mulheres ,  conseguiu, mobilizando o Brasil de norte a sul e de leste a oeste, apresentar emendas populares capazes de eliminar séculos de subordinação legal das mulheres aos homens e sua exclusão das instâncias de poder.

Reitero que foi graças à atuação junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM, que  as mulheres lançaram, em 1985, a campanha Mulher e Constituinte, cujo lema era: “Constituinte prá valer tem que ter palavra de mulher”. Esta campanha permitiu que discussões e debates acontecessem entre as mulheres, durante meses, por todo o país, resultando na elaboração da “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes”, a qual foi entregue ao Congresso Nacional no dia 26 de agosto de 1986, pelas mãos de mais de mil mulheres, cuja ação, conforme já foi dito, ficou conhecida como  o “lobby do batom”.

Esta carta, sistematizou reivindicações de muitos anos de lutas e a pressão constante das mulheres na Constituinte, articulando de maneira inédita e suprapartidária, aspectos de democracia representativa com democracia participativa, possibilitou que 80% do que fora requerido fizesse parte do atual texto Constituição Federal.

Portanto, não é por acaso que em seu artigo 5º, inciso I, a Constituição diz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, e no inciso XLI deste mesmo artigo, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”.

Somente para citar algumas questões bem específicas sobre as quais dou detalhamento no meu livro, vale pontuar que há influência da ação das mulheres na elaboração dos seguintes artigos e incisos do Texto Constitucional: artigo 5º, incisos I e L; artigo 7º, incisos  XII; XVIII; XIX; XX; XXV; XXX; artigo 189; artigo 201, incisos II; V; artigos 201, no seu parágrafo 7º, I e II; artigo 226; dos parágrafos 3º ao 8º; artigo 227,  especialmente no seu parágrafo 6º, além de vários outros que não tratam especificamente de demandas femininas mas que foram fortemente influenciados pelo mencionado “lobby do batom”.

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