Uma lista tríplice contendo nomes de advogados baianos foi divulgada pelo TJ-BA no dia dez de abril do fluente ano. Este documento será enviado ao governador da Bahia para que proceda à nomeação daquele que ocupará o cargo de desembargador pelo quinto constitucional. Na referida relação não consta o nome de nenhuma advogada, não obstante a lista sêxtupla, enviada pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção Bahia (com o resultado da votação), indique que duas candidatas ao referido cargo obtiveram o terceiro e o quarto lugares no referido pleito.
Este fato, analisado conforme a perspectiva de gênero, e à luz das teorias feministas, notadamente daquelas que se ocupam da chamada “justiça de gênero”, indica que que o mencionado Tribunal, a exemplo de outros poderes constituídos, segue a tendência de manutenção do status quo patriarcal, dada a flagrante sub-representação feminina nesta esfera de poder.
Esta tendência, caracterizada pela majoritária, quando não exclusiva, presença masculina nestes espaços de poder e decisão, tem sido vista como algo absolutamente natural, explicado e justificado a partir critérios estritamente “técnicos” e/ou “meritocráticos”. Todavia, quando adotamos as lentes de gênero e analisamos de modo crítico esta realidade, empírica e teoricamente falando, percebemos, sem maiores esforços, que não existe qualquer inocência e muito menos coincidência no fato destas e de outras escolhas favorecerem, histórica e hegemonicamente, o gênero masculino. Isto se chama privilégio de gênero e se manifesta em diversos espaços sociais: no mundo da política, no mundo da economia, no mundo da ciência, no mundo do trabalho, etc.
Destarte, e apesar do referido tribunal ter discricionariedade para não acompanhar a vontade da categoria profissional, expressa através de eleições democráticas entre os pares, sob a condução da Ordem dos Advogados do Brasil, isto não impede que qualquer cidadão ou cidadã minimamente consciente e informado/a, e em especial, qualquer entidade, órgão ou instituição de produção de conhecimento e/ou de defesa dos direitos das mulheres, especialmente das mulheres de carreira jurídica, questionem o caráter antidemocrático das regras atuais, assim como suas androcêntricas interpretações, haja vista que nenhum poder está blindado do convite à reflexão crítica sobre a temática da (des)igualdade de gênero, uma vez que o Estado brasileiro assumiu compromissos nos âmbitos internacional e nacional (via convenções e legislações) com vistas à construção de uma justiça de gênero em nosso país.
Vale destacar, no entanto, que não está em discussão a competência e/ou a capacidade técnica e jurídica de nenhuma das pessoas envolvidas na lista preparada pelo Tribunal; mas não se pode abrir mão do direito de se refletir sobre a persistente desigualdade de gênero nas mais distintas esferas de poder, inclusive no Poder Judiciário neste país. Até porque, inúmeras pesquisas científicas tem destacado e criticado a centralidade masculina na vida social e nas estruturas de poder em particular, evidenciando que isto não é natural e não pode ser tratado como algo secundário, principalmente por quem opera com conceitos como igualdade, inclusão e justiça social, pois tanto decorre da desigualdade de gênero, como serve para o seu reforço, já que caracteriza todas as relações sociais e deve ser objeto de reflexão em todos os lugares.
Assim, pensando, o grupo de pesquisa e ação em Gênero, Direito e Políticas para a Igualdade (JUSFEMINA/UFBA) e a Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica, seção Bahia (ABMCJ-BA), tornaram pública uma moção de lamento e recomendação, destacando, no seu bojo, a simpatia e os esforços da referida Corte para com as temáticas de gênero, destacando, ainda, o papel da Coordenadoria da Mulher deste Tribunal de Justiça, tão bem representada pela Desembargadora Nágila Brito, onde reflexões sobre desigualdade, discriminação e violência contra as mulheres tem sido realizadas, de forma educativa e transformadora, junto à sociedade civil.
Com base nisto, a moção apresenta as seguintes recomendações:
“1) Que sejam criadas condições reais para que as questões de gênero sejam incorporadas cada vez mais às práticas e discursos das e dos desembargadores, mediante formação continuada promovida em parceria com entidades e instituições que operam com a interface Gênero e Direito; 2) Que nas próximas composições de listas tríplices do quinto constitucional existam possibilidades de debates prévios, no âmbito do Tribunal e com a sociedade civil, acerca da importância da inclusão das mulheres nesta esfera de poder; 3) Que a Coordenadoria da Mulher ganhe, de fato, status de órgão consultivo do TJ-BA antes de qualquer decisão que envolva a composição do Tribunal e sua política administrativa, como forma de valorização do trabalho do trabalho das atuais desembargadoras, das mulheres de carreira jurídica e das pessoas do gênero feminino da sociedade em geral.”
Considerando que as mulheres são a maioria da população e do eleitorado brasileiros, compondo também um significativo contingente dos corpos discentes das escolas de Direito em todo o país, sendo posicionadas como um grupo social que muito contribui para o desenvolvimento social, e em especial para o Sistema de Justiça, nas mais variadas funções e carreiras deste campo; nada justifica que, além de não terem as mesmas chances de disputa com os homens nos pleitos eleitorais em geral (seja nas entidades de classe dos advogados, do ministério público, da defensoria, do próprio judiciário, etc) ainda tenham que ficar de fora dos espaços de poder onde e quando são significativamente sufragadas para a composição de cargos como o de juízas com assento em algum tribunal, ou seja, que continuem sendo minorias nas diversas instâncias e esferas de poder.
Neste contexto, iniciativas como a do JUSFEMINA e da ABMCJ, não somente corroboram, mas fortalecem as lutas das mulheres em prol do aprimoramento e da ampliação da cidadania e da democracia brasileiras, vez que não se combate desigualdade de gênero somente fazendo discursos no mês de março, mas questionando a ausência das mulheres onde elas mais precisam ser enxergadas, valorizadas e incluídas, isto é, nos espaços destinados à promoção da Justiça, dentre eles, o Judiciário.
E isto, sem dúvida, requer uma postura que declare publicamente que não há possibilidade de se ter uma Justiça plena e, sobretudo, “justa” sem a ruptura com a lógica dos privilégios masculinos e o próprio déficit de gênero nos poderes constituídos, afinal, a lição mais educativa é aquela que testamos em casa.