Maria Lucia Fattorelli
Em geral, acredita-se que a dívida pública funciona como uma dívida pessoal. A dedicação de 16 anos à investigação do endividamento público no Brasil e outros países permitiu à Auditoria Cidadã da Dívida identificar que existe um “Sistema da Dívida”. O endividamento público está operando às avessas: em vez de ser um instrumento que aporta recursos aos orçamentos públicos, tem funcionado como um contínuo e crescente escoadouro.
A principal característica do “Sistema da Dívida” é a ausência de contrapartida real, ou seja, “dívidas públicas” são geradas por mecanismos financeiros de vários tipos. O dinheiro não entra.
O histórico da dívida compreende escândalos que passam até por suspeita de renúncia à prescrição, além da transformação de dívidas privadas em públicas. Novamente, o dinheiro não entra. Isso ocorreu em âmbito federal e estadual, como provou a CPI da Dívida concluída em 2010. O Banco Central (BC) respondeu expressamente que houve SIM transformação de dívidas privadas em públicas. Nos estados, a transformação de passivos dos bancos privatizados em “dívida pública” foi um escândalo e até hoje impacta fortemente suas finanças.
Operações suicidas realizadas pelo BC têm gerado centenas de bilhões de dívida pública sem contrapartida alguma ao país: o estoque da dívida interna saltou de R$3,204 trilhões em 31/01/2015 para R$3,937 trilhões em 31/12/2015, ou seja, a dívida cresceu R$732 bilhões em 2015. Onde foi parar essa montanha de dinheiro? Grande parte disso alimentou as escandalosas e sigilosas operações de swap, mediante as quais o BC garante a variação cambial a privilegiados contratantes, além da remuneração diária de toda a sobra de caixa dos bancos (operações compromissadas), em volume que alcança R$1 trilhão. Ambas de e legalidade duvidosa e sem transparência alguma.
A CPI comprovou que grande parte dos juros (despesas correntes) está sendo contabilizada como se fosse amortização (despesa de capital). Isso tem possibilitado uma burla à Constituição Federal (art. 167, III), que proíbe emissão de títulos para pagar despesas correntes. Essa manobra tem provocado a emissão de centenas de bilhões de títulos para pagar juros, o que é inconstitucional! Dados oficiais indicam a destinação de quase 50% do orçamento federal, todo ano, ao pagamento de juros e amortizações da dívida. Basta destinar “12,5 segundos” para ver os dados do SIAFI no site do Senado.
Essas são algumas evidências de que a dívida pública não tem sido gerada por excesso de gastos sociais ou investimentos importantes para a sociedade que paga a conta. A dívida tem crescido devido a mecanismos financeiros e juros abusivos, além de juros sobre juros, o que é ilegal. A Súmula 121 do STF não deixa margem a dúvidas: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.”
A Auditoria Cidadã da Dívida trabalha exclusivamente com dados e documentos oficiais e exige completa transparência, a fim de separar fraudes do que efetivamente devemos. Sequer sabemos a quem devemos, pois os detentores dos títulos são tratados com sigilo!
Por tudo isso, são descabidas as incriminações feitas pelo colunista da Folha, Alexandre Schwartsman, quando atrela “auditoria da dívida” a calote; acusa de fazer “confusão deliberada”, e chama de “caso de intolerância à dívida”. Na verdade, somos intolerantes às fraudes que têm impedido a vida digna em nosso rico país.
Publicado no dia 01/10/201
Imprensa/Auditoria Cidadã da Dívida