A eleição de 2018 para a presidência carrega para a história uma herança de caráter duvidoso, além da mácula da desigualdade de forças no campo virtual, por razões que o processo político e os procedimentos jurídicos parecem não ter dimensionado e que terminaram interferindo na normalidade democrática.
Em primeiro lugar, porque faltou um mecanismo capaz de se contrapor aos equipamentos tecnológicos de que se utilizou o candidato eleito, Jair Bolsonaro, para alcançar os milhões de sujeitos que se deixaram seduzir por discursos, notícias e fatos falsos (fake fews) que eram replicados em velocidade espantosa, sem conhecimento e contraditório sobre a informação por parte do outro candidato. Valeu, até os últimos momentos do pleito, o que foi “mentido” pela campanha de Bolsonaro.
Em segundo lugar, porque o sistema de justiça, (Poder Judiciário, Ministério Público) por todas as suas instâncias, demonstrou inexplicável tolerância com as ostensivas provocações do candidato do PSL, quando se omitiu na adoção de medidas para inibir seus discursos de insulto contra o povo negro, a comunidade LGBTTT, indígenas, nordestinos, quilombolas, mulheres, classe trabalhadora e ainda deixou de punir Jair Bolsonaro pela prática de incitação pública, durante a campanha, ao uso de armas, ao banimento, prisão de seus opositores e mais grave, ao “fuzilamento” de “petralhas”. Moa do Katendê, mestre de capoeira, foi vítima de brutal homicídio em Salvador por apoiador de Bolsonaro.
O Ministério Público indica a manifestação de Moa de ter votado em Haddad, como a motivação do crime. O deboche criminoso de um candidato autorizou a ação. Não sofreu advertência do sistema de justiça, tão intolerante com vulneráveis, periféricos, despossuídos, enquanto abre as asas (ou as togas) em proteção aos poderosos.
Os precedentes do processo de disputa em 2018 ao mais alto cargo do país já eram claros na desconstrução do Pacto de 1988, na prática político-jurídica de uma nova Constituição sem debate popular, na sedução por um modelo de Estado autoritarista, criminalizante, distanciado do Estado Democrático de Direito.
Um Estado midiático, conservador, onde a informação é manipulada e a violência transformada em espetáculo pela agencias que têm por dever a defesa de direitos e de princípios que a Constituição inscreve.
Nesse contexto, a Operação Lava Jato, comandada pelo Juiz Sergio Moro, crava na história do direito penal e processual brasileiros processos violentos de deslealdade jurídica, de desrespeito ao Estado de Direito e a Pactos internacionais firmados pelo Brasil.
Um recuo não muito distante e aparece a destituição da presidenta eleita Dilma Rousseff, o golpe parlamentar de 2016, legitimado pelo Poder Judiciário. As forças progressistas começam a se movimentar e a desvelar a “chicana” denunciada pelo campo da crítica ao aviltamento a princípios e garantias jurídicas, patrocinado por “setores do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal, respaldados pela mídia seletiva”, como escreve Carol Proner, na perspectiva, (obtida) de usurpar Luiz Inácio Lula da Silva da corrida eleitoral rumo à Presidência da República. Era premente a eleição de um “inimigo” para protagonizar a necessidade de medidas de exceção suspendendo direitos, contando, para isso, com a aprovação popular. O Poder Judiciário não hesitou em se aliar à mídia para a consecução de um objetivo muito maior do que “operar o direito”: o poder.
O Estado é uma “máquina” de repressão da qual se utilizam as forças de poder econômico, político, de elite, para manter a dominação. O Judiciário é parte do Aparelho de Estado, cria mecanismos de manutenção de poder pela classe dominante, através do aparato repressivo que age sempre com violência. Ao se portar como “último refúgio das demandas populares”, desqualificando a classe política e o Executivo, o Judiciário produz uma espécie de “violência simbólica” pactuada e de certo modo acolhida pelos destinatários.
Em princípio, o que esperamos do Poder Judiciário é que exerça a função jurisdicional garantindo as liberdades, direitos e princípios constitucionais que consagram a existência do Estado Democrático de Direito. Mas o painel da conjuntura é de um Poder Judiciário que extrapola suas funções e limites, que passa a judicializar o campo da política, em clara subversão de papéis.
O ativismo judicial (e também do Ministério Público), denominação para esse fenômeno, assume ares de disputa com a soberania popular, na medida em que usurpa o poder dos representantes eleitos, sob a alegação de que se portam de modo omisso e ineficiente.
O judiciário e seus ritos, suas vestes, sua linguagem afiada no conteúdo e propositalmente indecifrável compõem a mística de um poder distante do povo, mas aberto ao diálogo e à bajulação dos poderosos, com os interesses de cunho pessoal acima do Texto Constitucional.
Essa conduta militante que desponta (e se impõe), também identificada por juristocracia, precisa ser contida, mediante a democratização desse poder, tarefa que só a Reforma Política pode garantir.
A eleição de 2018 é um novo marco para a afirmação da resistência ao modo politicamente desleal, violento e juridicamente desprezível como o Poder Judiciário e o Ministério Público se conduziram. O processo político foi despido de suas vestes democráticas. A sociedade está conclamada a vesti-la com a força de sua militância.
*Marilia Lomanto Veloso é bahiana, advogada, doutora em Direito e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
IMPRENSA/Brasil de Fato